A vida entre dois reinos implica em decisões difíceis
Quem conhece a história narrada em Ester sabe que todo conflito que se desenrola nela começa, no terceiro capítulo, com uma decisão de Mordecai: a de não se curvar perante Hamã.
Quando pensamos nesta decisão, a nossa tendência imediata é interpretá-la como uma decisão acertada. Pressupomos que este era um dilema religioso e que Mordecai não quis negociar a sua fidelidade ao Senhor.
Pode ser… mas há duas coisas que, se consideradas, podem sugerir uma interpretação diferente.
a) Naqueles dias, o ato de curvar-se diante de alguém não era, necessariamente, um ato de adoração. Era, mais comumente, um ato político, de reconhecimento de autoridade. Como o policial de patente inferior que bate continência para o de patente superior.
b) Não parece que Mordecai tivesse dificuldade de se curvar diante de todas as pessoas. No capítulo 8, levando a cabo o pedido de Mordecai, Ester faz isso diante de Assuero, quando vai pedir que o seu povo seja poupado.
Essas coisas sugerem que o problema, para Mordecai, talvez não fosse tanto “o que” ele precisava fazer, mas “diante de quem” ele deveria fazer isso. Ele parecia ter algum problema com Hamã. Ciúmes por não ter sido reconhecido enquanto ele foi? Ira justa em virtude da liderança autoritária? Ressentimento étnico motivado por causas históricas?
Afinal, Mordecai deveria ter feito o que fez? Da perspectiva da soberania de Deus, depois de conhecer a história, é fácil responder a esta pergunta. Já da perspectiva da sabedoria ativa, é uma pergunta difícil de responder.
Mas obter esta resposta não me parece o mais importante. Importante é aprender que, neste mundo criado por Deus, onde o pecado se faz presente, existem decisões difíceis. Sim, há situações em que não há qualquer dificuldade e a distinção entre a obediência e a desobediência é mais do que óbvia. Contudo, frequentemente, nos vemos diante de circunstâncias no meio das quais saber como agir é mais difícil do que parece.
Como mostra a relação de Mordecai com Hamã, a vida entre dois reinos implica decisões difíceis. Saber disto tem algumas implicações para nós.
Primeiro, precisamos cultivar a nossa comunhão com o Senhor. Pensamos muito, na vida cristã, como a mera aplicação de princípios racionais. Mas isto é um engano. O cristianismo não é só uma teoria. É o relacionamento real com uma pessoa. Ser cristão é ser dirigido pessoalmente pelo Senhor ao discernimento espiritual em cada situação. Para isso, precisamos viver em constante comunhão com Ele.
Depois, precisamos ser humildes. Ninguém busca o Senhor sem a consciência das suas limitações. Precisamos reconhecer que, independentemente do quanto nos foi permitido saber, ainda somos míopes. Precisamos crescer em conhecimento, e devemos evitar todo juízo apressado e condenação definitiva de quem pensa diferente de nós em circunstâncias obscuras.
Além disso, precisamos ser corajosos. Não podemos deixar de agir. Mesmo não tendo toda a clareza que gostaríamos, precisamos nos posicionar. E, às vezes, a gravidade das circunstâncias exigem posicionamento firme e contundente, acompanhado da boa disposição de assumir as consequências de nossas decisões.
Finalmente, precisamos ser prudentes. Ou seja: escolher as brigas com sabedoria e calcular o custo das nossas decisões. Hoje, o grande desafio é manter em mente a natureza da guerra na qual estamos envolvidos. Não é a guerra de homens contra mulheres, dos da direita contra os da esquerda, dos pretos contra os brancos, dos calvinistas contra os arminianos; é a guerra entre Deus e Satanás, entre a Serpente e Cristo.
Porque, diante da decisão de Mordecai, Hamã propôs um plano de extermínio de todos os judeus? Não era só falta de proporcionalidade. Ele agia como instrumento do reino parasita, tentando frustrar o projeto de Deus de trazer ao mundo aquele que esmagaria a cabeça da serpente. Esta é a guerra! E, quando perdemos isso de vistas, entramos em batalhas secundárias, coamos mosquitos e engolimos camelos.
Texto por Felipe Fontes.
Originalmente compartilhado em seu Instagram.
Publicado com a autorização do autor.